Anos 70 Bahia – Episódio 29
O tempo estava perfeito na expedição ao pasto, verdíssimo e úmido... mas
não conseguíamos identificar os cogumelos tal como nos foram descritos: “eles
têm as chapeletas douradas no topo e uma espécie de cabresto no talo. Tendo
umidade e gado zebu, é só procurar no meio da bosta, não tem como errar”. À
distância, em meio ao capinzal, os ruminantes de grandes corcovas nos
observavam curiosos... havia aqui e ali variados tipos de fungos.
Experimentamos uns dois ou três para ver se funcionavam, poderiam ter-nos
envenenado... até que, em certo momento, abriu-se ante nossos olhos a epifania:
uma colônia de cogumelos de esplendorosa beleza, com as enormes chapeletas
douradas no centro... Arrancamos cuidadosamente tantos quanto foi possível,
mascamos alguns, o gosto era tão horrível quanto altas as nossas expectativas.
Na hora da partida, o avô nos levou
até o ponto do ônibus para Salvador... Nas mochilas, frutas e dois grandes
sacos plásticos repletos de psilocybes,
um tesouro! Na breve espera pelo buzu, eu remoía na boca o sabor intragável...
então percebi estar viajando há séculos, não atinara o momento exato em que a
onda bateu... espantou-me a fumaça que subia dos paralelepípedos, as casas do
outro lado da rua se estorciam em formatos e cores mutantes, faziam caretas
esquisitas, por vezes sorriam, pareciam dispostas a entregar seus segredos.
Entramos no ônibus. No meio da
viagem, na altura de Santo Amaro, o sol poente lançava raios alaranjados janela
adentro, um sol de barba dourada, como nunca se viu igual. Abrimos a sacola de
frutas e começamos a distribuir pitangas, cajus, carambolas e tangerinas aos
passageiros. Deu contágio e bateu uma febre distributiva: começaram a circular
biscoitos, frutas, doces, o escambau... até o cobrador se chegou lá da frente,
puxou um samba de roda e o ônibus entrou glorioso na rodoviária de Salvador,
com bater de palmas e cantoria desatada a bordo. (Relato da visita de Lula ao avô no altiplano do Vale do Paraguaçu, perto de Cachoeira e São Félix,
no coração do Recôncavo).
ANTONIO SERGIO – Certa vez fomos lá de carro, ele me levou à fazenda do
avô para mostrar as colônias de psilocybe cubensis, que abundavam
no pasto... depois de atravessarmos a ponte sobre o Paraguaçu, cruzamos as ruas
estreitas de São Félix em direção à estrada que subia o morro. Ele se tocou com
um casarão verde na esquina e gritou: “Pare o carro! Preciso falar com os
presos!” Na fachada do prédio havia, de fato, a placa “Detenção”. Mal parei,
ele saltou e a passos rápidos desapareceu porta adentro. Fiquei à espera no
carro, ouvindo rádio, um tanto tenso, temendo que o trancafiassem... assim, ele
teria tempo à vontade para conversar com os presos... Menos de meia hora
decorrida, eis que ele reaparece. Enigmático, entra no carro, bate a porta com
força e seguimos viagem morro acima. Não lhe perguntei o que aconteceu no
interior da cadeia pública, se conseguiu falar com os presos... E sobre o que
rolou na visita, ele nada comentou.
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Casa de detenção em São Félix |
RICARDO ALVES – Fomos catar cogumelos no sítio de uma viúva em Ponta de
Areia, na ilha, onde havia zebus. A noite tinha sido chuvosa e os tambores do
terreiro do Babá não pararam de bater, era tempo de culto aos eguns e rolava
uma vibração que nos sacudia os nervos. Pela manhã, logo cedo, entramos no
pasto e a colheita foi boa, deu mais de um saco. Os cogumelos foram então
desidratados e oferecidos numa cerimônia, acompanhados de bolo e mel.
ANOS 70 BAHIA – O psilocybe
cubensis multiplicava-se em colônias nos pastos úmidos do Recôncavo, em
especial onde se criava zebu... sabor intragável, lisergia indizível... já não
se encontra como antigamente, com a atual preferência por gado nelore e afins.
No México, os astecas primordiais chamavam de “carne de Deus” ao primo psilocybe zapotecirum.
ANA MARIA BAIANA – A trufa dos doidões vinha em dois tipos: a original,
psilocybe mexicana, que também aparecia como personagem na obra de Castañeda, e
a nativa, psilocybe cubensis, cujo
habitat natural não podia ser mais telúrico: os dejetos deixados por gado,
notadamente o zebu. Não é difícil imaginar figuras cabeludas vagando por pastos
em busca de placas de bosta de vaca e forjando peculiares amizades com
criadores de zebu. Uma vez obtido o precioso cogumelo, a técnica pedia que
fosse transformado em chá para a extração de seu princípio ativo (e
psicodélico), a psilocibina. (Almanaque Anos 70).
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Fernando Noy: "Eu comi até seis, sem tomar conta do excesso - e cheguei a outros planetas!!!" |
NEY MATOGROSSO – A primeira vez que tomei, compreendi o universo, o meu
significado no planeta e como, na relação geral, como o homem não é mais
importante que um grãozinho de areia ou a menor das plantinhas. [...] Chorei
feito um doido ao compreender isso... (Depoimento no livro “Anos 70: enquanto corria
a barca”, de Lucy Dias, pg. 152).
DOMINGOS OLIVEIRA – Sentei numa cadeira e fiquei olhando, emocionado,
grave, as bocas se movendo, as pessoas conversando. De repente, senti que toda
a varanda se movia, levando-nos com ela. Movia-se numa velocidade imensa, cada
vez maior. Movia-se no espaço determinadamente. A terra era uma nave. E eu
voava com ela pelo espaço infinito. E mais que isso: era eu quem comandava a
nave. Não senti medo nenhum. Nem prazer. Era o que devia ser. Finalmente, a
realidade!” (Trecho do livro “Vida Minha”).
FERNANDO NOY – O ópio é a rainha de todas elas. Um amigo me deu um
pequeno tablete, um quadradinho. Pus na língua e engoli. Estava lendo o
Baghavah Gita. Em determinado momento, olhei para o lado: Krishna veio em minha
direção falar comigo.
PENÉLOPE – A viagem faz a gente perder a noção do tempo. Em Ondina, a
maré estava vazia e entrei mar adentro até onde pude e sentei numa pedra bem
distante, lá no meio. Fiquei admirando aquilo, horas e horas. Tudo lindo, lindo
e perdi a noção do tempo. A maré encheu e eu no topo da pedra. Paguei o mico de
ser resgatada pelo corpo de bombeiros – e podia ter me afogado!
NELSON – Antes da meia noite, os hippies beberam uma sopa temperada com
cactos colhidos na lagoa do Abaeté, botões avermelhados que Edward, um
americano recém-chegado, afirmava que continham o mesmo princípio ativo do
peiote, a mescalina. Segundo ele, cactos da mesma família dos existentes na
península de Yuacatan. Coveiros foi o único a dispensar a sopa e o único,
também, que permaneceu vestido, com sua túnica branca, quando Alondra deu a
ideia de todos ficarem nús para que não houvesse nenhuma barreira material (a
roupa) entre os hippies e o asteroide, caso o cometa viesse a aparecer. (...) A
garota fazia-se acompanhar por um gato angorá branco-vegetariano, dizia ela,
que tinha o hábito de comer arroz integral e, nas loucuras de fim de semana,
quando os “filhinhos de papai” de Salvador brincavam de hippies na aldeia,
comia bolo de farinha de trigo com maconha e passas. Alondra não se separava do
felino para nada, nem mesmo naquela noite em que os hippies, após formarem um
círculo de mãos dadas e beber sopa de cactos, se deitavam de barriga para cima
sobre a areia, totalmente nus, tocando-se uns aos outros com os dedos dos pés,
enquanto se extasiavam com a beleza de Órion, o brilho das Três Marias. (Trecho
do livro “A viagem: uma crônica hippie dos anos 70”).
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By Robert Crumb |
ARTUR CARMEL – Cogumelos são ácido lisérgico em estado puro... Certa feita, marquei com uma namorada para passarmos o São João em um lugar depois de Nazaré das Farofas... Fui pegar uma ganja e... né, atrasei pro encontro com a galera, no ferry... Não existia celular e o jeito foi apelar à memória: embarquei no ferry tentando lembrar o local para onde fora minha namorada linda e um bocado de gavião... Sabia que o nome do local terminava em alguma coisa tipo 'ipe' e que ficava depois de Nazaré.
Já em Nazaré, a notícia de que eu teria que procurar a galera em Aratuípe ou Jaguaribe... Putz! Já era noite e arrisquei Aratuípe, então uma vilazinha menor que hoje. Mas nada do bar do Expedito, nada da galera... Retornei a Nazaré já sentindo umas pontadas na testa... Fumei um e fui por umas buates bem bregas. Não comi ninguém e fui dormir, para no outro dia vasculhar Jaguaribe. Em lá chegando, constatei que o Expedito do bar morrera fazia uns dois anos... E as pontadas na testa aumentando... Ao ir pros arredores da cidade, no intuito de arranjar uma carona e sair daquele fim de mundo, encontro um colega de desventura: um caminhoneiro que deveria ir para Jaguaripe, no Ceará, e havia dado com a carga na cidade quase homônima do Recôncavo baiano.
Pedi uma carona ao irmão de infortúnio e desci em Nazaré, bem numa encruzilhada do asfalto. Àquela altura, já ciente que não encontraria mais minha virgem dos lábios e peitos de mel, sentei na encruzilhada e enrolei um básico – easy ryder total. Eis que passam uns malucos da Ribeira, em direção ao pasto da Rua da Linha, onde iriam catar cogumelos!! Deram uns paus na diamba e seguiram. Minutos depois, chega uma kombi com placa de SP, com uns cabeludos dentro... Deram uns pau no banzé e perguntaram se eu sabia onde tinha... cogumelos... Lá vou eu com os cabeludos. Parece que nem só os malucos da Ribeira foram ao pasto... andamos pra caráleo e só conseguimos quatro – um pra cada. Os paulistas iam pra Cacha Prego e, completamente viajandões, me deixaram no entroncamento.
Quando começo a pedir carona pro ferry, vejo surgir o carro dos malucos da Ribeira... Whatshappening? O carro, um fuca, vinha bem devagar e com a porta do carona aberta. Achei que era pra facilitar minha entrada na viatura... qual nada! Um dos meus brodes itapagipanos, soube depois, queria a todo custo descer do carro e ir correndo até o ferry... imaginem... Minha aparição foi a salvação deles que, pelas caras, estavam mesmo em outras dimensões. Fui contar minha história mas eles não deixaram e me calaram com um cogumelo lindo, tirado de dentro de um saco plástico.
Corta para dentro do ferry. Aquela travessia foi uma viagem pra dentro d'alma, dentro do mar, da cidade, das luzes... E a namorada? Bem, aí já é uma outra história...
FERNANDO NOY – O cogumelo é porta do céu... e dali você pode ver a terra pequenina na mão, como se fosse um brinquedo. Ah, que bom lembrar de Alondra, grande taroteira e cabalista. Viajei com ela e o nome do seu gato chamave-se Enrique... havia chegado do Uruguai e viajamos muito de carona juntos, até o Maranhão... lembro da francesa Maty Vitar, que morava em Ondina, naquele povoado encantado perto de São Luis, onde também conheci nada menos que a Madame Satan, já com muita idade, mas sempre rodeada de belíssimos garotos que, acho, deram o nome ao bombom Garoto... Jahhhhhh!!
FAUZI ARAP – Antes que pensem em droga, convém lembrar que, naquele
momento, o ácido estava sendo lançado como uma descoberta revolucionária, e era
fornecido gratuitamente a médicos de todo o mundo para que pesquisas fossem
feitas na busca de uma definição clara do papel que o novo medicamento poderia
desempenhar nos mais variados tratamentos. (...) Quando chegou ao Brasil, um
folheto da Sandoz, que estava lançando o LSD no mercado [A Sandoz produziu LSD
sob a forma de comprimidos e ampolas entre 1947 e 1966, quando então foi
proibido], enumerava alguns efeitos possíveis do novo medicamento, entre eles o
de uma volta ao passado. (“Mare Nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos”.
Editora Senac SP, 1998. Pgs. 25 e 37).
LUIZ CARLOS MACIEL – Os hippies da nova geração abandonaram a luta,
refugiados no recém-descoberto território psicodélico que drogas como o LSD
tornaram possível. Inventaram uma espécie de esquizofrenia sintética,
pré-fabricada, que lhes permite escapar da velha esquizofrenia tradicional,
muito conhecida, embora não dominada pelos psiquiatras. Quem corta todas as
suas relações com a estrutura social opressiva, como os hippies, não acaba no
hospício mas em parques, praias, ilhas etc. A maneira mais direta de evitar o
“nervous breakdown” é assumir tranquilamente a própria loucura, como um novo
estilo de vida. No mundo do esquizofrênico por escolha, a esquizofrenia é a
normalidade e a psiquiatria tradicional perde seus direitos. (“Muito louco,
bicho” – em O Pasquim, no 34 – 11-17 de fevereiro de 1971).
ANOS SETENTA BAHIA -- O químico Albert Hoffman descobriu o LSD por
acaso, quando fazia uma experiência e uma pequena gota dessa experiência pingou
em sua boca. Ele teve sensações e visões e repetiu a experiência três dias
depois, quando anotou: “O meu eu desapareceu num estado místico, o céu e a
terra se juntaram, eu me senti como parte integrante do universo, entrando num
novo estado de consciência.”
ABRÃO SLAVUTSKY – A loucura tem que ser tomada como algo que o sistema
pode produzir; porque, para mim, a loucura não está tanto na pessoa como no
sistema de relações interpessoais que certos sistemas produzem. (Entrevista com
o psicanalista Eduardo Pavlovsky – Versus, no 2, São Paulo, pg.42).
Narazé dos cogumelos era o paraíso das farinhas. No dia seguinte de sol após a chuva era o momento certo para colher os cogumelos, fresquinhos, recém-nascidos da bosta do boi Zebu. Quase toda semana eu estava lá, andando pelos pastos das fazendas, tomando banho nu no riacho, no meu retorno a Berlinque, as vezes a pé, mais de 30 quilômetros, trazia um saco contendo até cem, duzentos ou mais chapeuzinhos mágicos. O chã eu mesmo preparava, na fogueira.
ResponderExcluirLembro de viagens delirantes, nos pastos, quando lá mesmo me abastecia, ou, na Ponta de My Friend em Berlinque. Uma dessas viagens psicodélicas em especial me marcou, foi o “dia de minha morte” quando ciente de que tinha chegado a minha hora, me despedi de todos e de todos e me resignei de acabar a vida nessas circunstâncias, tão cedo e tão jovem. Tinha bebido três xicaras de chã de cogumelos e não conseguia me mexer.
Oito horas depois, já o efeito dissipado e longe da possibilidade de morrer, eu estava embaixo de minha casa que erra tipo uma palafita suspensa para a maré alta passar, abraçado a um cachorro, que ficara comigo durante a lenta agonia. Era tudo que me sobrara na vida e com ele celebrava a minha reconciliação com o futuro.
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