terça-feira, 7 de junho de 2016

ARAÇÁ AZUL: CAETANO INTERROMPE O SHOW E MANDA O PÚBLICO PARA A ORIGEM DAS SUAS EXISTÊNCIAS

Primeira página da reportagem na extinta revista "O Cruzeiro" - pesquisa Jorginho Ramos
Anos 70 Bahia – Episódio 12

O clima de fervura reinava nos shows da Concha Acústica, sempre com intensa participação da plateia. Deu-se lá, além do episódio entre os Novos Baianos e o performer argentino Fernando Noy (relatada no Episódio 2), a explosão de Caetano Veloso ante uma Concha lotada e impaciente com problemas do som e com a performance do astro cantando músicas de Araçá Azul, seu disco mais experimental – e que teve talvez o maior índice de devolução em toda a história da MPB. Irritado com os apupos, Caetano joga o microfone no chão, manda todo mundo para a “puta que pariu” e libera o famoso “vá tomar no cu”. Com o tempo, ficaram essas duas versões: a Concha se dividiu, com metade aplaudindo o artista e a outra metade vaiando-o estrepitosamente. Convocada, a guarda dos bons costumes da "nobre família baiana" levou o bardo para prestar esclarecimentos na delegacia. O público, dividido, fazia o maior barulho e a balbúrdia tomou conta das escadarias da Concha.
ROBERTO VIEIRA – Eu vaiei porque ele não tinha o direito de mandar todos, inclusive a mim, que não gostei de tomar no cu. Ele, mesmo sendo vaiado, tinha que ter continuado o show até o fim, pois foi muito bem pago pra isso.
JOÃO OSMÁRIO – Que bobagem... Caetano fez muito bem. Já você, também fez o que quis... e como nunca gostou de... não fez o que Caetano aconselhou. Tudo certo e quites. Não consigo enxergar você vaiando um artista. Acho deselegante e não combina com você... viu, Robertinho? Saudades.
CAÓ CRUZ ALVES – Eu estava lá, ele mandou todos pra pqp!
Foto: acervo Estúdio Lambe Lambe (Marcos Maciel)

JANETE CATARINO – A vaia deve ter sido para o policial que o prendeu. Nem mesmo com toda DITAdura isso deveria acontecer, ser levado preso por mandar ir ppqp ou tnc? Fala sério! Uma pena que ele fez diretamente e não fez performance. Acho ótimo mandar alguém ou todos à origem das suas existências! Totalmente d+!
Marco Antonio Queiroz – Acompanhei tudo até a delegacia. Coisas da Concha.
Artur Carmel ­– A Bahia ainda não tinha estofo para assistir/ouvir Araçá Azul. Nem um bom som, também.
Foto: acervo Estúdio Lambe Lambe (Marcos Maciel)

ANOS SETENTA BAHIA – O relato precioso e elucidante com que o jornalista Jorge Ramos nos brindou é indispensável para o perfeito entendimento da ocorrência. Nas palavras de Jorginho:
JORGINHO RAMOS – O DIA EM QUE CAETANO VELOSO SAIU DIRETO DO SHOW NA CONCHA ACÚSTICA PARA UMA DELEGACIA
Novembro, 1973 – Estudante da Escola Técnica Federal da Bahia, economizei durante quase dois meses o dinheiro da mesada e da passagem do ônibus (naquele tempo não havia meia-passagem para estudantes e nem Smart Card) e durante esse período fui a pé de casa à escola, o que me permitiu juntar o suficiente para comprar o ingresso do esperadíssimo show que Caetano Veloso faria na Concha Acústica, no sábado (23). Eu tinha vindo de Cachoeira, dois anos antes, para morar em Salvador e aquela seria a primeira vez que iria à Concha.
Cae, como era chamado à época, vinha fazendo esse mesmo show em diversas capitais, sempre com grande afluência de público e bastante elogiado pela crítica. Salvador seria o “gran finale”. Afinal, após ter voltado do exílio em Londres, entre julho de 69 e janeiro de 71, ele só tinha se apresentado em Salvador no ano anterior, no legendário show “Chico & Caetano”, no Teatro Castro Alves. A expectativa, portanto, era imensa e naqueles dias só se falava nessa apresentação. A fila para comprar o ingresso dobrou quarteirões. Perdi um dia inteiro e fiquei sem almoçar, mas garanti o bilhete. Antes, a produção quis pautar a apresentação para o TCA – que Caetano vetou, alegando ser muito “luxuoso” – ou para o Vila Velha, mas ele impôs: tinha de ser na Concha Acústica a sua última apresentação do ano. E, ainda, mandou vir de Santo Amaro os seus pais, Dona Canô e seu Zezinho, para assisti-lo. O show seria à noite, mas desde o finzinho da tarde o movimento já era intenso nas imediações da Concha, que, tão logo foi aberta, começou a lotar.
Caetano depondo, sob o olhar desolado de seu pai. Mais atrás, a esposa Dedé. Pesquisa Jorginho Ramos

O atraso de meia-hora impacientou o público, que logo se acalmou quando, às 21h30, Caetano adentrou o palco, de camisa branca, desabotoada e esvoaçante, calça colorida e descalço. O público vibrou, todos se levantaram e o aplaudiram de pé, entre gritos e assovios. Nas primeiras músicas, tudo calmo, as pessoas vibravam. Mas na quarta canção começaram os problemas com o som e algumas pessoas se impacientaram. Caetano pede desculpas e puxa um sucesso que os baianos já conheciam: “Cada Macaco no seu Galho”, do amigo Riachão. Nessa hora, Caetano põe as mãos na cintura e começa a requebrar. Começam assovios, vaias e a reação das pessoas logo evolui para ofensas. Alguns gritam “viado”, “bicha”, “entendido”. O clima fica tenso, mas Caetano prossegue e quando começa a cantar “A Volta da Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, novamente acontecem problemas com o som. E em meio à mistura do irritante som da microfonia com a vaia ensurdecedora, novos xingamentos. Bastante irritado, Caetano “roda a baiana”, responde aos xingamentos com ofensas, atira o microfone ao chão e sai correndo para o camarim. Um providencial cordão de isolamento com soldados da PM evita que algumas pessoas ensandecidas invadam o palco, quebrem os instrumentos ou até mesmo tentem linchá-lo.
Mesmo com a suspensão, muita gente permanece nas arquibancadas atirando objetos no palco vazio e começa a gritar pedindo o dinheiro de volta. Confusão formada, Caetano é levado pelos policiais para a Delegacia de Jogos e Costumes, onde iria prestar depoimento no inquérito a ser aberto. A direção do TCA se faz presente e anuncia que a renda ficaria retida até que a Justiça se pronunciasse. Na delegacia, uma dezena de pessoas assiste ao depoimento do artista; entre elas, um desolado seu Zezinho, uma sempre serena dona Canô e uma agitada Dedé Veloso. Do lado de fora, alguns fãs mais fiéis e solidários aguardam e o aplaudem quando Caetano é liberado, já na madrugada do domingo.
À tarde, já refeito após horas de sono e do descanso da noite e madrugada agitadas, Caetano recebeu alguns jornalistas em sua casa, em Ondina. Ele explicou o incidente e admitiu: “Errei sim. Eu não devia dizer palavras tão grosseiras em público”. Mas também tentou justificar-se: “Eu não sou moralista, mas acho que no meu xingamento ao público não existiu nenhuma obscenidade. Ninguém é ingênuo de chocar-se com o que eu disse num momento de emoção. Quando apresentei este mesmo show em Goiânia, muitas pessoas gritaram, latiam... mas eu não me abalei. Aqui era diferente, estava na minha terra, com minha família presente, era uma coisa muito próxima”.
O fato foi bastante comentado em toda Salvador, naqueles dias que antecederam o verão de 73/74. Mas logo foi superado e, em janeiro, ele fez um novo show em Salvador, dessa vez sem nenhum incidente, no Teatro Vila Velha, com Gilberto Gil e Gal Costa. Este espetáculo resultou no álbum “Temporada de Verão – Ao Vivo na Bahia”. E no mês seguinte Caetano e o público baiano fizeram as pazes de vez. Era Carnaval e ele lançou “Frevo do Trio Elétrico” e todos cantaram “Abram alas minha gente/que o frevo vai passar/é o famoso trio/de Dodô e Osmar/Quando sai às ruas/Alegria é geral/é quem mais anima nosso Carnaval...” Quando Caetano subiu no trio de Dodô e Osmar para cantar, em plena Praça Castro Alves, ovação e delírio geral! Eu, presente a esses dois momentos tão distintos, separados apenas por dois meses, guardei-os indeléveis em minha memória e minha emoção!



Um comentário:

  1. eu estava nesse show. nessa época dona canô morava na Rua Francisco Ferraro, rua lateral ao colégio Central, no edifício era um ap por andar eles moravam no terceiro andar e minha avó Angelina Copelo Grimaldi no quarto. eu era moleque e ficava maravilhado de ver o movimento. eu tinha estudado com Irene na Escolinha Ana Nery na Saúde quando eu tinha 10 anos.

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