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Anos 70 Bahia – Episódio 33
Nos anos 70, o esquema superpesado da
repressão infiltrava-se em todo o país e o alvo primeiro era o ativismo
político que dava testa ao regime militar por meio da luta armada. As nuvens de
chumbo espraiavam-se, de fato, sobre a sociedade como um todo, incluindo os
“estranhos”, os alternativos que encararam o sistema com as armas da contracultura,
do altruísmo comunitário e de formas de inserção marginais à sociedade
retrógrada e consumista que então dava as cartas.
Emblemático é o
caso do hippie que, depois de preso e torturado, subiu no elevador Lacerda e de
lá se atirou, gritando para que todos ouvissem: “Eu sou gente, eu sou gente!”
Esse episódio saiu nos jornais e é comentado no livro de Aninha Franco sobre o
teatro na Bahia.
Os Novos Baianos,
por sua indumentária e estilo de vida, eram perseguidos sem trégua e só
conseguiram um pouco de sossego quando foram morar num sítio em Jacarepaguá.
Moraes Moreira conta que, estando eles num bar tomando umas cervas, duas
pessoas se aproximaram e perguntaram: “Vocês são os Novos Baianos?” Pensando
tratar-se de fãs, responderam: “Somos!” Os caras eram policiais disfarçados e
imediatamente os levaram em cana. Em ações coordenadas e ferozes, a repressão
ia tirando de cena os que incomodavam o establishment opressor e conformista.
Assim se deu com Caetano e Gil, que foram presos, tiveram os cabelos raspados e
foram obrigados a sair do país, refugiando-se em Londres.
TOM ZÉ – Para prender Caetano,
entraram no prédio no 43 da avenida São Luís, centro de São Paulo; subiram ao
vigésimo andar e tocaram. A empregada e o motorista relutaram muito em chamar seu
Caetano e dona Dedé àquela hora. Logo depois, tanto eles quanto Dedé (que veio
primeiro) se convenceram de que Cae ia acordar cedo naquele dia. Mas, antes de
entrar de novo no quarto, Dedé parou quieta diante da porta, inspirou um
"valha-me Deus!", ouviu os visitantes dizendo algo baixinho, expirou
e entrou para acordar Caetano. Pouco depois ela estava na sala, sentada,
sozinha, tesa. Caetano tinha ido. Soava e martelava na sua cabeça o nome da
rua, o nome da rua de Vandré. “Valha-me Deus!” – foi o que ela ouvira na hora
do seu "valha-me Deus": o nome da rua onde morava Vandré. "Será
que dá tempo?" – pulou para o telefone. Deu. (Alguns dias depois, minha
irmã Lúcia esteve com Vandré no Chile). Aí, Dedé se lembrou que a porta ficara
aberta. Pouco depois, na via Dutra, seguia para o Rio uma caminhonete. Cae e
Gil estavam na traseira. Presos. (Trecho do livro Tropicalista Lenta Luta).
LUCY DIAS – Deixar rolar ou deixar
sangrar? Para quem ficou no país, disposto a botar pra quebrar, só existiam
duas possibilidades: curtir o barato da descoberta de si mesmo e fazer sua
revolução comportamental, sem script prévio; ou roer o próprio fígado e não ver
outra saída senão virar guerrilheiro, entrando de sola na contrarrevolução
armada, com previsível script final. Ambas mutuamente excludentes. (Anos 70: enquanto corria a barca, pg.
160).
LULA AFONSO – Além da repressão
focalizada nos grupos armados, a farda inspirava terror nas zonas de classe
média e na periferia. A violência policial explodia nas ruas de forma explícita
– nas manifestações, nos estádios, nos shows, nas festas de largo, no carnaval.
Muita gente no banco do carona dos onipresentes fusquinhas, principalmente se
cabeludo fosse, temia circular com a cabeça abaixada, dando a sugesta de estar
enrolando um charo nas mãos. Nas prisões, apanhar era "de lei" e
ninguém se sentia seguro. Circulava o relato sobre a intervenção da escritora e
dramaturga Aninha Franco numa roda de policiais que espancava covardemente um
jovem, no Campo Grande. Irrompendo no centro do tumulto, Aninha abraçou a
vítima, apresentou aos canas a sua carteira da Ordem dos Advogados e bradou:
“Não toquem neste homem! Ele é meu cliente!” Fato notável, cuja veracidade só
ela própria pode confirmar.
ANINHA FRANCO – Verdade. Fiz isso
algumas vezes e a carteira da OAB era ouro nesses momentos. Cara de maluca, mas
carteira, na mão, OAB 3945, pude livrar a cara de muita gente. Num carnaval
entre 1970 e 1975, quando fui tirar um cara apanhando numa roda de PMs, um
deles me empurrou com tanta força que eu cai e bati a cabeça.
Eurico de Jesus – Naquele período das indesejáveis nuvens de chumbo, qualquer
forma de expressão artística era submetida irremediavelmente a uma censura
prévia. Para driblar os obstáculos, os artistas inteligentemente recorreram e
refinaram o recurso da metáfora!
Guido Lima –
No teatro éramos obrigados ao tal ensaio para
a censura federal, onde grande parte do conteúdo do espetáculo era cortado e
quase sempre se perdia o sentido e as idéias propostas. Vários shows e peças
foram proibidas, perdendo-se tudo, inclusive o tempo de
elaboração, ensaios, figurinos e cenários. Só restava o protesto com cabelos
longos e roupas coloridas em sinal de protesto, mas, mesmo assim, muita coisa
furou esse bloqueio da censura para o delírio do público que, naquele momento,
mudava os seus conceitos e naturalmente as atitudes. Com novas idéias e muita
criatividade transformamos a culinária, a arquitetura, a moda, as artes e o
mundo. Todos os conceitos foram incorporados ao poder da flor e do amor.
Silvio Palmeira – Sensacionais os relatos, Guido Lima falou tudo, na nossa seara
tanto fazia ser teatro, literatura, música, qualquer coisa que era falada,
escrita e tal, tinha que passar pelo crivo dos censores da federal.
Eliane Cecilia
Machado – Isso sem contar os censores dentro das redações. E a lista negra
das pessoas que, sequer, podiam ser citadas.
Jerônimo Aparecido – Vale ressaltar o mecanismo usado pelo Estadão (Estado de São
Paulo) que colocava sonetos camonianos nos espaços destinados a notícias,
artigos e reportagens vetados pela censura.
SERGIO SIQUEIRA – E aquela onda de
gente colorida ocupando espaços, avançando, requereu uma análise “profunda” da
Polícia Federal a respeito das condutas fora do padrão, o que a levou a
decifrar, com sua peculiar visão, aqueles símbolos e comportamentos: “O amor
esconde o proxenetismo, a paz é um slogan da subversão e a flor é o aroma dos
entorpecentes. Ao decifrar dessa forma os símbolos hippies, a Polícia Federal
ordenou a todos os estados uma campanha rigorosa contra jovens de colar no
pescoço e cabelos compridos. Na semana passada, perto de 200 deles foram presos
na Feira de Arte de Ipanema, no Rio de Janeiro, e 12 foram expulsos da
mini-feira. Cento e vinte estão presos em Salvador e mais alguns foram para a
cadeia no Recife, onde serão investigados um a um." (Revista Veja, 4 de
março de 1970).
PRABHU EDMILSON – Só quem viveu
aqueles anos de chumbo grosso sabe de fato como era difícil a vida de todos.
Para se ter uma ideia, se um polícia qualquer encontrasse alguém com um livro
de sociologia debaixo do braço, a cana era certa. A gente andava com medo. Eu
me escafedi, mas andava sempre atento quando saía de uma livraria em Salvador.
E olha que comprei muitos livros comunistas, alguns dos quais conservo até
hoje, como o "Manifesto Comunista", de Karl Marx. Passei algum
perigo, pois fiz política estudantil e militei por algum tempo no PC do B. As
reuniões eram feitas na minha casa! Depois, o partido mandou acabar as
reuniões. Ainda bem!
NADYA ARGÔLO – Tempos difíceis e
sangrentos!
Jerônimo Aparecido – A arte e
o jornalismo eram os inimigos públicos da ditadura.
JOSE JESUS BARRETO – O amor, o
sorriso e a flor!
RAIMUNDO MATOS DE LEÃO – Ainda que
houvesse a mais dura repressão, pelas rachas e pelas frestas conseguíamos botar
o mundo de cabeça para baixo com as ideias e os comportamentos animados pela
contracultura.
JERÔNIMO APARECIDO – Líamos Reich e
Mc Luhan, mas no contexto geral, éramos quase todos alienados.
ANOS 70 BAHIA – Quem lê Reich e Mc
Luhan não é... hoje, os livros de vampiros e literatura fácil proliferam.
JERÔNIMO APARECIDO – Não disse isto,
o que tentei afirmar é que mesmo lendo Wilhelm Reich e Marshall Mc Luhan (e
assistindo a Godard, Buñuel, Gravas etc.), éramos alienados em relação ao que
acontecia nos subterrâneos do Brasil. Tínhamos, o que era natural, a busca pelo
hedonismo, mas poucos de nós entendiam (e ouviam) o que ditava o "planalto
central )
ANOS 70 BAHiA – Mesmos esses estavam
buscando uma outra história ou até mesmo se divertindo, a vida é única e se não
houver utopia, não vale – vi uma análise que achei pertinente, um escritor
falando que um grande erro da esquerda, quando assumiu o poder, foi não ter
absorvido vários conceitos hippies no seu modelo de governança. Enfim, a ideia
do livro “Anos 70 Bahia” é resgatar uma década que merece ter sua memória, pelo
seu valor artístico e detonador de grandes mudanças comportamentais – isso
escrito por mais de 200 mãos, daí todos os comentários serem super bem-vindos.
SILVIA MARIA NASCIMENTO – Anos
Setenta Bahia, entenda o que se quis dizer: "alienado" era todo
aquele que não falava de política para difundir os dogmas de esquerda. Podia
ler o que quer que fosse, mas se não fazia coro, era 'alienado/a'. Igual a
hoje. Mas estas pessoas optaram por ser livres disso e daquilo.
ANOS 70 BAHIA – Silvia Maria
Nascimento, talvez a revolução tenha sido maior e muitas heranças estão aí.
JERÔNIMO APARECIDO – Silvia Maria
Nascimento, não era "opção", era ausência, desconhecimento, mas não
interessa esta discussão, 40 anos depois... E tampouco alienação nada tem a ver
com esquerda, centro ou direita.
ELIANE CECILIA MACHADO – Jerônimo,
sou obrigada a discordar de você. Em vários aspectos. Não concordo com a
alienação. Nem com o simples hedonismo. Explico por quê: não li Reich (agora
sou obrigada a ler), mas cheguei à Bahia conhecendo a obra de Karl Marx, Franz
Kafka, Aldous Huxley, Horace MC Coy e Salinger. Eu e metade da Bahia. Eram os
ídolos do momento. Pelo menos para quem saiu de Minas. Então, tínhamos
informação. Sabíamos o que acontecia ao nosso redor. Acho que simplesmente
optamos por vivermos outra vida. Por sermos felizes. E sou testemunha: nunca se
produziu tanto em termos de literatura, cinema, dança, artes plásticas e música
como naquela época. Vi surgirem os Novos Baianos, Fagner, João Ubaldo, Naná
Vasconcelos e uma infinidade de artistas da mais alta qualidade.
LULA AFONSO – Havia opções a rodo e a
granel para os que queriam mudar o mundo. Em linha paralela às práticas
disciplinadas dos “parteiros da história” que queriam transformar a sociedade
com o ideário de Engels, Marx, Lenin, Trotsky e Bakunin (conforme a tendência
abraçada), muita gente leu demais – tal como dito por Jerônimo – Reich, Mc
Luhan, Marcuse (circuito menos politico do que intelectivo-filosófico). Em
vertente quase oposta transitavam os ligados no underground americano, que liam
William Burroughs, Allen Ginsberg, Timothy Leary e afins... Não foram poucos
(em quaisquer dessas searas) os que entraram em curto-circuito e torraram os
neurônios ou desnivelaram as sinapses. Ou voltaram atrás, em autos de fé
galileicos. No Brasil, continua perceptível uma facção do intelectualismo
setentista que estacionou nas beiradas e se questiona (ou é questionada) por
não ter aderido à militância clandestina... Com idade precoce e um tanto
aluado, eu curtia as fogueirinhas de papel quando a barra pesou pra valer, em
1969. “Amigos presos, amigos sumidos assim...” A militância que conheci não me
levava a sério e talvez por isso eu possa hoje contar esta história...
SÉRGIO SIQUEIRA – A verdade é que os
anos 70, apesar da repressão, deixou muito – pelas ideias os artistas foram
perseguidos e alguns torturados, como Raul Seixas (eles queriam que Raul
entregasse os membros terroristas da sociedade alternativa); prenderam Caetano
e Gil e forçaram outros a sair do país. Gente da vanguarda intelectual como
Rogério Duarte e Wally Salomão foram torturados, assim como incontáveis outros
que buscavam liberdade e mudanças. Em Arembepe, dezenas de hippies foram presos
sem saberem por quê. No mais, a geração 70 deixou um legado. Não é atoa que os
Novos Baianos estão mais modernos do que nunca – e a herança está aí: vida
comunitária, alimentação orgânica, emancipação feminina, ioga e um herança
cultural e artística pulsante até hoje – na realidade, foi uma revolução.
SUELI ROCHA LIMA CANATO – Ainda hoje
conclamam a volta da ditadura. Para nós, que vivemos e assistimos os tempos de
chumbo, é vergonhoso e assustador.
ELIANE CECILIA MACHADO – Era "da
Bahia, para o mundo". Assim se referia um amigo meu, artista plástico, que
vendia facilmente suas obras para a Alemanha, mas não para o resto do país. O
legado dessa época? Eu acho que quem a viveu desenvolveu o gosto pelas artes,
criou seus filhos com mais sinceridade, olha o Brasil com mais realismo e tem u
monte de histórias pra contar... rsrs.
MARGARITA GAUDENZ – Nosso livro sobre
os artistas cubistas foi levado
pela PF, acharam que tinha a ver com
Cuba!
JOILDO GOES – Quem viveu nesses
tempos sabe que era foda!
NOTA: Alguns (poucos) depoimentos
foram deslocados do contexto original pelo editor, que diligenciou pela
coerência do enunciado com o fluxo de opiniões a que foi transferido. O
objetivo foi preservar contribuições valiosas em diálogos não incorporados. Em
suma, a sacra manifestação autoral permanece ancorada nas próprias palavras e
se constituem, na construção em mosaico deste livro, em “ilhas” do
livre-pensar, submetidas aqui e ali a praxes flexíveis de edição. Escrito
experimentalmente a 200 mãos e inovando em forma, Anos 70 Bahia respeitará e
fará a imediata exclusão de textos que o autor considerar impropriamente
alocados.
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