sábado, 4 de junho de 2016

METE O COTOVELO E VAI ABRINDO O CAMINHO

Os Novos Baianos levaram para bordo a aparelhagem de som que traziam do Rio para os shows na Concha e inovaram o trio elétrico, adicionando à guitarra a voz dos cantores

Anos 70 Bahia – Episódio 8

Aos pés do poeta dos escravos esbaldava-se gente de todos os gêneros e bandeiras, ombro a ombro com as celebridades, em êxtase coletivo. Na parte alta da Praça Castro Alves, junto às escadarias, as bichas (como eram então chamados os gays) e transformistas comandavam o espetáculo, exibindo-se com fantasias mirabolantes em luxo, fulgor e criatividade. A ferveção e a pegação se alastravam em ondas em meio às barracas de bebidas, diferenciadas em arranjos criativos da mais autêntica arte popular. Antes da padronização asinina e do monopólio marqueteiro, nelas dava para se encontrar a marca de cerveja preferida e a praça, regida pela diversidade, era o ponto de encontro de todas as tribos, gêneros e tendências da esbórnia momesca.

SÉRGIO SIQUEIRA – A Praça fervia. Quando chegava Moraes Moreira, literalmente balançava o chão da praça. No território livre do poeta tinha todo tipo de loucura e alegria. Certo ano, houve um poste que dava choque e tinha gente que, malandramente, pegava nele e “fazia terra” em você e era você que levava o choque. Naquela noite chovia, e a praça era quase lama. Tinha um homem-aranha, não o aranha super-heroi, mas o aranha bicho, que engatinhava correndo como uma aranha entre as barracas da Praça. No fundo, ele pensava que era uma aranha.

EDUARDO LOGULLO – A praça Castro Alves atraía um elenco inacreditável para a época. Gal vestida de pierrô, Caetano de calção e camiseta, Dedé Veloso, Wilma Dias, Sandra Gadelha, os Dzi Croquetes, Sônia Braga, Maria Bethânia sentada em um engradado de cerveja, Torquato Neto, Jards Macalé, Wally Salomão, Jorge Mautner, Nelson Jacobina, Jorge Salomão, Norma Bengell, Rogério Duarte, José Simão. Em 1974, a cantora Maria Alcina apareceu por lá com uma lata cheia de lantejoulas para brindar os amigos. (Colhido em "Chuva, suor e cerveja" –http://tropicalia.com.br/leituras-comp…/chuva-suor-e-cerveja).

Com os pés na lama carnavalesca, o ícone fotográfico Mariozinho Cravo colhe imagens no coração da folia. Ao lado, o também fotógrafo Carlos Gordilho (foto Vicente Sampaio). 

PRABHU EDMILSON - Amigos, o texto diz bem o que rolava no Carnaval daquele tempo ali na praça Castro Alves. Era como se todos nós estivéssemos recebendo as bênçãos do poeta, que fazia vistas grossas às nossas estrepolias. Essa turma se reunia lá, tomava seus "gorós", ou outras coisas, o papo corria maneiro, e ninguém mostrava frescura. As barracas ficavam esparramadas pela praça, o pessoal sentava-se nas escadarias do velho prédio da antiga Seretaria da Fazenda, hoje, Palácio dos Esportes, e o mijadouro era ali mesmo na muralha. Posso atestar isso, porque trabalhava por essa época no jornal A Tarde, que ficava exatamente na Praça Castro Alves. Fechada a redação, adivinha para onde íamos?

SÉRGIO SIQUEIRA – Os que ficavam até o limite final, a última hora, eram presenteados pelo banho de mangueira do caminhão-tanque da Prefeitura, que chegava na madruga para limpar a praça. O banho acontecia entre gritos, pulos e refrões de sucesso cantados de maneira pastosa. Num desses banhos, um folião só de cueca se jogava em direção aos jatos de água e gritava repetidamente, como um mantra: “A praça é do povo como o céu é do condor/a praça é do povo como o céu é do condor a praça é do povo como o ceú é do condor...” O banho de mangueira era uma tradição para quem ficava até o último acorde na Praça do Poeta, uma praça em que todo artista de responsa gostaria de ter tocado para a galera, o próprio Moraes adorava e ele mesmo fala isso no seu livro “Sonhos Elétricos”.

Caetano, Osmar, Gil, Wally Salomão, Henning (foto acervo pessoal André Macedo).

JORGINHO RAMOS – Me parece que a foto [acima] é dos anos 80. Em 85, Mário Kértesz foi eleito prefeito de Salvador e Wally Salomão foi nomeado presidente da Fundação Gregório de Mattos. Nesse cargo, coordenou o Carnaval de 86. Acho que a foto é desse ano. 

MORAES MOREIRA – Avistar aquela praça lotada era de arrepiar! Havia uma enorme expectativa no ar, e a chegada do trio de Dodô e Osmar era o grande momento esperado. Quando o caminhão despontava, a galera enlouquecia e uma vibração total tomava conta da Praça: "E a Coisa Acesa ficava / Enquanto que a multidão / Fazia a grande catarse / Cantando alegre refrão / E aí, haja coração! / Soltei meu grito de guerra / Varre, varre vassourinha / As ruas da Bahia" (Moraes Moreira: Sonhos Elétricos).

FERNANDO NOY – Muitos carnavais depois, fui convocado pelos artistas plásticos Fernando Coelho e Tatti Moreno a tomar parte do projeto que concorria ao concurso da decoração do carnaval. Eles fizeram uma espécie de trono na maquete e me entregaram quilos de purpurina... Daí vem a lenda de rainha, já esse foi o rol do projeto, que acabou ganhando e pelo qual, além da honra, recebi um esplêndido cachê. Também fizeram uma passarela que caiu logo na primeira noite, pelo embalo... Dancei dois dias sem dormir, em êxtase perpétuo. Ainda bailo ao lembrar...BSSSSSSSSSSSS!!!

ERA LACERDA ENCARNAÇÃO – Fernando Noy, você é um espetáculo!!!

Trio elétrico da Saborosa

SÉRGIO SIQUEIRA – A última atração da praça Castro Alves, já amanhecendo, era o carro-pipa. Os últimos foliões bêbados pediam que apontassem a mangueira para eles, e em êxtase recebiam aquele banho que curava a ressaca. Eva Fidelis, hoje morando na Alemanha, definiu bem esse final de festa: “E as vassouras dos garis expulsavam os retardatários, normalmente já tombados pelo chão”.

Mara Mar – Gente bonita, não havia agressões, carnaval sem cordas, com os artistas misturados ao povo. Tempo bom, que não volta mais.

Carollini Assis – Que delícia de relatos...

Antonio Pastori – Como esse poeta pode esquecer das primeiras transmissões ao vivo que fez na TV Itapoan, não nos anos 70, mas nos 80 ainda carregando a cultura ímpar bem narrada pela rapaziada aí do texto? Foram os últimos acordes de "histórias que não voltam mais", trazendo um verso que aprecio do Roberto Mendes e do Portugal para essa boa saudade que bateu agora.

Manfred Muss – Reparem nas caixas de bebidas, eram garrafas de Antartica, Brahma e Coca-Cola no meio da multidão... havia as baianas do acarajé que, quando a situaçao ficava crítica, afastavam a galera com espirros de azeite de dendê fervendo... Cada barraca era uma obra de arte, elas circulavam todas as festas de largo, uma referencia de cada tribo... e o famoso estacionamento da Castro Alves... dizer que ali tudo acontecia é pouco para defini-lo...

Mara Mar – E todos se abraçavam na chuva, suor e cerveja. Antartica, Brahma, como falou Manfred Muss, os pingos do azeite eram temidos. Beijos e abraços e amor no meio da multidão... mortalhas molhadas de suor.

Edmilson Araujo – Sem falar que o banheiro era o muro da Praça Castro Alves, onde o pessoal mijava à vontade!!! Na hora das mulheres, se fazia uma rodinha para evitar os olhares dos abelhudos!!! Êita tempinho bom!!!

Adma Newport – Grandes carnavais...

Manfred Muss – Engraçado, vejo sempre nos comentarios uma certa veia nostálgica... Afortunadamente, a vida segue em frente e não para naquilo que vivemos... Existem os nossos filhos... e eles amam isto que nós odiamos hoje, assim como nós amamos os Beatles e Rolling Stones detestando, as músicas de nossos pais... A fila anda, quem viveu viveu, quem curtiu curtiu... Eu "algumas vezes" curto o que está aí, não estou morto nem acho que o "nosso tempo" foi o tempo bom...

Anos Setenta Bahia – Estamos buscando histórias de um tempo em que a Bahia era imaginário do mundo – memória. As aventuras continuam, vemos que sim pelos seus passeios de bicicleta...

Renato Dantas – As pegações da galera eram homéricas...

Hugo Sánchez – Insuperável, era tudo bom, fantástico, memorável, ainda me alimento dessas lembranças.

LULA AFONSO – Estacionei o velho Passat na parte alta da Ladeira da Conceição da Praia, logo abaixo de uma barraca de comida em um quina da Ladeira da Montanha, juntinho à praça do poeta. Quando voltei da esbórnia, já com o dia claro, o carro estava uma gosma só, encoberto de restos de iguarias baianas sobre ele atiradas na raspagem de pratos no fundo da barraca, entre elas caruru e vatapá, sem contar os litros de mijo jateados pelos foliões noite adentro, nas laterais e nos pneus. Para conseguir dirigir, limpei como pude o parabrisas, com um resto de fantasia largada na calçada, e fui levando em direção ao bairro da Federação, onde morava. Na rua Carlos Gomes, na altura do Largo dos Aflitos, percebi a salvação: um caminhão-pipa jateava as ruas com água e detergente. Parei, fiz sinais para o motorista pela janela, ele compreendeu quando viu o estado do carro. Fez de lá o sinal de positivo, fechei os vidros. O impacto do jato foi forte, o carro chacoalhava e ribombava, pensei que ia virar – mas saiu dali limpinho, exalando aquele perfume de desinfetante com altos teores... menos de um mês depois, entendi melhor o poderio da química: a ferrugem invadiu a lataria e o carro, em pouco tempo, soltava pedaços na rua...


Um comentário:

  1. Estou procurando o autor da foto do trilho elétrico com os Novos Baianos no começo desta materia. Se tiver por gentileza, me passe o contato do fotografo. Muito obrigado.

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